segunda-feira, 5 de abril de 2010

O Discreto Bater de Asas de Anjo...


"O Victor é um adolescente. Arranjou um emprego no Mcdonalds. No Mcdonalds trabalham adolescentes. Antes de iniciar o seu trabalho eles são treinados. São treinados, primeiro, a cuidar do espaço em que trabalham: a ordem, a limpeza, os materiais - guardanapos, canudinhos, temperos, bandejas. É preciso não desperdiçar. Depois, são treinados a lidar com os clientes. Delicadeza. Atenção. Simpatia. Sorrisos. Boa vontade. Clientes não devem ser contrariados. Têm de se sentir em casa. Têm de sair satisfeitos. Se saírem contrariados, não voltarão. O Victor aprendeu bem as lições: começou o seu trabalho. Mas logo descobriu uma coisa que não estava de acordo com o aprendido: os adolescentes, fregueses, não cuidavam das coisas como eles, empregados, cuidavam. Tiravam punhados de canudinhos para brincar. Usavam mais guardanapos do que o necessário. Punham as bandejas dentro do lixo. Aí o Victor não conseguiu se comportar de acordo com as regras. Se ele e os seus colegas de trabalho obedeciam às regras, por que os clientes não deveriam obedecê-las? Por que sorrir e ser delicado com fregueses que não respeitavam as regras de educação e civilidade? E ficou claro para todo mundo, colegas e clientes, que o Victor não estava seguindo as lições... O chefe chamou o Victor. Lembrou-lhe o que lhe havia sido ensinado. O Victor não cedeu. Argumentou. Disse de forma clara o que estava sentindo. O que ele desejava era coerência. Aquela condescendência sorridente era uma má política educativa. Era injustiça. Os seus colegas de trabalho sentiam e pensavam o mesmo que ele. Mas eram mais flexíveis... Não reclamavam. Engoliam o comportamento não educado dos clientes-adolescentes com o sorriso prescrito. E o chefe, sorrindo, acabou por dar razão ao Victor. Qual a diferença que havia entre o Victor e os seus colegas? O Victor tem Síndrome de Down."

(Rubem Alves , Correio Popular, Caderno C, 23/09/2001.)