Surdez, autismo, discalculia, cegueira, dislexia, síndrome de Down... todos aqueles que possuem algum tipo de necessidade especial (física ou educacional) têm direito à Educação, mas qual a melhor maneira de proporcioná-la?
Consultor de Educação inclusiva, Romeu Sassaki esclarece as dúvidas dos internautas sobre como promovê-la nas escolas.
1 - Manter uma turma formada apenas por alunos portadores de necessidades especiais em uma escola comum é uma forma de inclusão?
Uma turma formada exclusivamente por alunos com deficiência constitui uma classe especial dentro de uma escola comum. Na melhor das hipóteses, essa prática é uma forma de integração. Contudo, ela é incompatível com o paradigma da inclusão.
2 - Quais são os primeiros passos para uma escola se tornar inclusiva? Que tipos de suporte, treinamento e ambientes devem ser oferecidos?
A expressão primeiros passos sugere uma seqüência linear de procedimentos. No processo inclusivo, que por natureza requer uma mudança estrutural no sistema de ensino, a linearidade não serve como estratégia. As ações inclusivas devem ser executadas simultaneamente por vários setores e atores sociais: sensibilização, conscientização, capacitação, acessibilização, adequações curriculares, preparação de novos materiais, aquisição de tecnologias assistivas, de informação e de comunicação, entre outros recursos.
3 - Quando a escola trabalha com material apostilado, como seus conteúdos devem ser desenvolvidos com alunos portadores de necessidades especiais? Seria melhor recorrer a outro tipo de material (especial ou adaptado)?
Antes de falarmos em conteúdos do “material especial” ou do “material adaptado”, é necessário esclarecer a questão dos conteúdos curriculares. O diferencial da abordagem inclusiva em comparação com a abordagem tradicional (integrativa) está em seu conceito de adequação curricular em oposição ao de adaptação curricular. Criadas há mais de 30 anos em plena era da integração escolar, as adaptações curriculares separavam do currículo algumas partes que deveriam ser modificadas em função de especificidades e necessidades especiais de alunos com deficiência. Daí surgiram adaptações curriculares, separadamente, para alunos cegos, surdos e com deficiência intelectual ou física. Tal prática fez com que coexistissem dois currículos: o “normal” e o “adaptado”. Por outro lado, o conceito de adequação curricular — fruto da proposta inclusivista — consiste na elaboração de um único currículo adequado a todos os alunos, com e sem deficiência. Trata-se de um currículo flexível o bastante para possibilitar sua adequação às especificidades e necessidades especiais de cada segmento representado no alunado (gênero, etnia, raça, idioma/dialeto, cultura, condição socioeconômica, orientação sexual, faixa etária, deficiência, etc.).
4 - De que maneira a inclusão de pessoas com deficiência pode ser benéfica se a maioria dos educadores não está preparada para educá-las?
O processo de inclusão não pode ser interrompido à espera de que todos os educadores estejam preparados para ensinar alunos com deficiência. Tal preparação se dá graças à inclusão desses estudantes, que, devido às suas necessidades e habilidades, levam o professor a enfrentar os desafios apresentados pelas novas situações envolvidas no processo de ensino-aprendizagem e a encontrar soluções realistas para cada aluno e com o apoio de toda a comunidade escolar. Os benefícios da inclusão não se restringem aos portadores de necessidades especiais, pois todos os alunos ganham em termos de efetiva aprendizagem.
5 - Qual é a formação ideal para professores lecionarem para turmas em que alguns alunos são portadores de necessidades especiais?
Em primeiro lugar, cada professor já está formado em sua disciplina. Posteriormente, ele poderá fazer um curso de especialização em Educação inclusiva (ofertado por faculdades e universidades) e/ou cursos breves de capacitação oferecidos pela própria escola ou por outras instituições. Durante a realização de todos esses cursos de formação continuada, o importante é que os professores adquiram um novo olhar sobre todos os alunos (e não apenas sobre os com deficiência) e aprendam a lidar bem com qualquer aluno.
6 - Em uma turma em que há apenas um aluno com deficiência, é preciso dar maior atenção a ele? Esse aluno apresenta mais dificuldades de aprendizado? Se a resposta for sim, surgem duas dúvidas: 1) Isso é um problema, já que o restante da turma não receberá a mesma atenção? 2) Os alunos com deficiência devem ser tratados de forma diferenciada ou como qualquer outro estudante?
Basicamente, essas questões já foram respondidas anteriormente. Não é apenas o aluno com deficiência que exige maior atenção do educador. Na proposta inclusiva, todos os estudantes requerem mais e melhor atenção, o que significa que o aluno com deficiência não necessariamente tenha mais dificuldades de aprendizagem. Portanto, é preciso eliminar o mito “deficiência = dificuldade de aprendizagem”. Qualquer estudante — mesmo o que não é portador de necessidades especiais — pode apresentar dificuldades de aprendizagem. O olhar abrangente do professor inclusivo perceberá, identificará e trabalhará tais obstáculos. Os alunos com deficiência devem ser tratados da mesma forma que os demais, com base no princípio da igualdade entre todos, em termos de dignidade e direitos humanos. Contudo, eles devem ser tratados de forma diferenciada em função das especificidades e necessidades especiais decorrentes do tipo de deficiência que possuem. Assim como os alunos que não são portadores de deficiência devem ser tratados de forma diferenciada em função de suas especificidades e necessidades especiais decorrentes do segmento a que pertencem.
7 - Como deve ser a avaliação escolar desses alunos?
A avaliação escolar dos alunos com deficiência deve ser a mesma aplicada aos demais. O que muda com o paradigma da inclusão é o que se entende por avaliação escolar, não importa se ela é planejada para este ou aquele aluno. A avaliação escolar inclusiva precisa ser contínua (e não pontual), ocorrendo, portanto, o tempo todo ao longo de cada ano letivo. Para tanto, realizam-se inúmeras atividades que revelem como e o que o aluno está aprendendo (e não somente a prova, que, aliás, é dispensável). Esse tipo de avaliação serve para indicar o que o professor e a escola precisam mudar para que o aluno efetivamente aprenda, e seu objetivo é manter os alunos incluídos (e não eliminá-los), por isso busca avaliar cada aluno por ele mesmo (e não compará-lo com os demais). Cada avaliação, em relação às anteriores, intenciona levar o aluno à realização máxima (e não classificá-lo por nota).
8 - Há alguma lei que garanta e especifique como deve ser a inclusão das pessoas portadoras de necessidades especiais nas escolas comuns? O que os pais de crianças com deficiência podem esperar e exigir dessas escolas?
Além de normas educacionais estaduais e municipais, existem inúmeros documentos do MEC que orientam, recomendam e/ou determinam como deve ser o processo inclusivo nas escolas comuns. Os mais conhecidos são as Diretrizes Nacionais da Educação Especial na Educação Básica (2001), as leis n.º 9.394 (1996), n.º 10.172 (2001), n.º 10.436 (2002) e n.º 10.845 (2004), o Decreto n.º 3.956 (2001), a Portaria n.º 3.284 (2003) e a Resolução CEB n.º 2 (2001). O documento que traz detalhes do processo inclusivo é o Parecer CNE/CEB n.º 17 (2001). Neste momento, a proposta do MEC sobre a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva está em tramitação no Congresso Nacional. Ela reflete os avanços ocorridos na educação de crianças com e sem deficiência no Brasil. Existe também uma vasta produção de textos técnicos sobre o assunto, inclusive não- oficiais. O que os pais devem exigir dessas escolas é que elas transformem o sistema de ensino (inclusive envolvendo-os ativamente nesse sistema), seguindo o caminho que está sendo exposto nesta entrevista.
9 - Por que há tantas dificuldades de inserção profissional de pessoas com deficiência intelectual? Qual é o papel da escola na superação desses obstáculos?
Tais dificuldades não ocorrem apenas em relação a pessoas com deficiência intelectual. No Brasil, a maioria das crianças com qualquer tipo de deficiência está fora da escola, as que estudam estão em escolas desatualizadas a respeito da Educação inclusiva. A maioria dos adolescentes deficientes está fora dos cursos de profissionalização (públicos ou particulares), os que se profissionalizam estão em escolas que não aplicam os princípios inclusivos. A maior parte dos jovens e adultos portadores de necessidades especiais está fora do mercado de trabalho em conseqüência de preconceitos das empresas. Uma das soluções para esse problema está na aplicação do Decreto n.º 5.598 (2005), que regulamenta a contratação de aprendizes (incluindo pessoas com deficiência de todos os tipos). O Art. 2.º do Capítulo I afirma que “Aprendiz é o maior de quatorze anos e menor de vinte e quatro anos que celebra contrato de aprendizagem, nos termos do Art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho — CLT”. Seu Parágrafo único estabelece que: “A idade máxima prevista no caput deste artigo não se aplica a aprendizes portadores de deficiência.” No Capítulo II, o Art. 3.º explica que “Contrato de aprendizagem é o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado não superior a dois anos, em que o empregador se compromete a assegurar ao aprendiz, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz se compromete a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação.” Seu Parágrafo único determina que “Para fins do contrato de aprendizagem, a comprovação da escolaridade de aprendiz portador de deficiência mental deve considerar, sobretudo, as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização.” O Art. 4.º prescreve que “A validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social, matrícula e freqüência do aprendiz à escola, caso não haja concluído o ensino fundamental, e inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob a orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional metódica.” Ainda nesse mesmo Capítulo, o Art. 5.º estabelece que “O descumprimento das disposições legais e regulamentares importará a nulidade do contrato de aprendizagem, nos termos do Art. 9.º da CLT, estabelecendo-se o vínculo empregatício diretamente com o empregador responsável pelo cumprimento da cota de aprendizagem.”
10 - Qual é o maior desafio para conseguirmos colocar em prática um modelo educacional realmente capaz de proporcionar o acesso de todas as pessoas à Educação, independentemente de suas características pessoais?
O maior desafio é o de eliminar barreiras atitudinais (preconceitos, estigmas e estereótipos) que resultam em discriminação contra pessoas com deficiência, entre outras formas de segregação. À medida que formos implementando a acessibilidade atitudinal, as demais barreiras (metodológicas, instrumentais, programáticas, comunicacionais e arquitetônicas) serão mais facilmente eliminadas.
11 - Que livros ou autores o senhor recomenda para educadores que desejam se preparar para trabalhar com alunos portadores de necessidades especiais?
Atualmente contamos com centenas de livros, artigos e anais de seminários sobre Educação inclusiva. Recomendo 18 títulos:
1) ALVES, Fátima. Inclusão: muitos olhares, vários caminhos e um grande desafio. Rio de Janeiro: WAK, 2003.
2) ARANHA, Maria Salete (Org.). Referenciais para construção dos sistemas educacionais inclusivos. Brasília: MEC/SEESP, 2004.
3) Carvalho, Rosita. Removendo barreiras para a aprendizagem: educação inclusiva. Porto Alegre: Mediação, 2000.
4) FÁVERO, Eugênia. Direitos das pessoas com deficiência: garantia de igualdade na diversidade. Rio de Janeiro: WVA, 2004.
5) GIL, Marta (Coord.). Educação inclusiva: o que o professor tem a ver com isso? São Paulo: Ioesp/Ashoka Brasil, 2005.
6) MANTONA, Maria Teresa (Org.). Pensando e fazendo educação de qualidade. São Paulo: Moderna, 2002.
7) MEC/SEESP. Ensaios pedagógicos — Educação inclusiva: direito à diversidade. [Anais do] III Seminário Nacional de Formação de Gestores e Educadores. Brasília: MEC/SEESP, 2006.
8) MITTLER, Peter. Educação inclusiva: contextos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2003.
9) PAROLIN, Isabel (Org.). Aprendendo a incluir e incluindo para aprender. São José dos Campos: Pulso, 2006.
10) Reily, Lucia. Escola inclusiva: linguagem e mediação. Campinas: Papirus, 2004.
11) RODRIGUES, David. Inclusão & educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo: Summus, 2006.
12) SAAD, Suad. Preparando o caminho da inclusão: dissolvendo mitos e preconceitos em relação à pessoa com síndrome de Down. São Paulo: Vetor, 2003.
13) SASSAKI, Romeu. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 7. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2007.
14) STAINBACK, Susan; STAINBACK, William. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: ArtMed, 1999.
15) STOBÄUS, Claus; MOSQUERA, Juan (Orgs.). Educação especial: em direção à educação inclusiva. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.
16) VOIVODIC, Maria Antonieta. Inclusão escolar de crianças com síndrome de Down. Petrópolis: Vozes, 2004.
17) WERNECK, Claudia. Sociedade inclusiva: quem cabe no seu TODOS? Rio de Janeiro: WVA, 1999.
18) WISE, Liz; GLASS, Chris. Trabalhando com Hannah: uma criança especial em uma escola comum. Porto Alegre; Artmed, 2003
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